FMI: desumano ao nível micro e macro

5 de Março de 2020 por Eric Toussaint


Manifestação de mulheres vítimas do microcrédito, em Colombo, 27-02-2020

Hiruni, mulher de pescador, que tem a seu cargo uma família cinco pessoas com um rendimento de cerca de 2,5 euros por dia (500 rupias do Sri Lanka), está muito endividada. A fim de aumentar o rendimento da família, contraiu um empréstimo de 50.000 rupias (250 euros) à LOLC, uma instituição financeira não bancária (um estatuto que lhe permite fugir aos regulamentos impostos às instituições bancárias pelo banco central) especializada em microcrédito (https://www.lolc.com/lolc-micro-credit). Com esse dinheiro, Hiruni lançou-se na produção de mosquiteiros impregnados de insecticida (como recomendam fundações como a de Bill Gates), que ela vendia por 2000 rupias a peça (10 euros). Durante algum tempo a coisa funcionou, mas dois factores alheios à sua vontade vieram jogar contra ela: 1. a taxa de juro praticada pela LOLC é claramente abusiva (mais de 50 % de taxa real de juro) e as penalizações são enormes em caso de atraso no pagamento; 2. uma firma comercial poderosa começou a vender mosquiteiros importados a um preço 25 % inferior, pagável em duas prestações. Hiruni não conseguiu fazer frente à concorrência, porque o preço praticado por aquela empresa era inferior aos seus custos de produção. Teve de interromper a produção e comercialização de mosquiteiros e não pôde prosseguir o reembolso normal da dívida. Isto levou-a a pedir um segundo empréstimo a outra instituição de microcrédito, para poder continuar a pagar à LOLC. Hiruni encontra-se desesperada e sobre-endividada.



A acção do FMI tem impacto directo sobre a vida de centenas de milhares de mulheres como Hiruni do Sri Lanka.

O FMI é a favor do direito de as empresas de crédito estabelecerem as taxas de juro que lhes apetece – tudo isto em nome da «liberdade» dos preços e do mercado

De facto, o FMI há muito tempo faz pressão no sentido do derrube das barreiras alfandegárias que protegem os/as produtores locais, quer se trate de agricultore/as, pescadore/as, artesã/os, ou outro/as. Esta é uma das razões pelas quais Hiruni e seus semelhantes já não conseguem viver do que produzem. O FMI também favorece, acompanhado do Banco Mundial e de outras instituições internacionais, a desregulação do sector bancário e a promoção do microcrédito. É a favor de que as empresas de crédito estabeleçam as taxas de juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. que lhes apetece – tudo isto em nome da «liberdade» dos preços e do mercado.

Por isso Hiruni, como tantas outras pessoas, tem de pagar taxas de juro exorbitantes. O FMI, em concertação com outras instituições internacionais, pressionou os governos a privatizar ou encerrar os bancos públicos de crédito, os quais concediam empréstimos a taxas razoáveis, geralmente subsidiadas (isto é, sem obter lucros), coisa abominável para o FMI e o Banco Mundial.

Resultado: Hiruni, tal como outras pessoas na mesma situação, não conseguem encontrar fontes de crédito do lado dos poderes públicos.

Vergonha! Vergonha! LOLC (=banco de microcrédito) tu sugas nosso sangue para fazeres lucro!

Para completar este quadro negativo, é preciso acrescentar várias condições impostas pelo FMI na política de crédito ao Sri Lanka, como a muitos outros países. O FMI quer que o Governo reduza o défice público cortando nas despesas sociais e no número de funcionários públicos. Em resultado desta política, Hiruni e milhões de pessoas no Sri Lanka vêem fugir-lhes a gratuitidade (obtida na década de 1960) do ensino e da saúde.O FMI declara que a decisão do Governo de fixar uma taxa de juro máxima de 35 % para os empréstimos de microcrédito deve ser temporária, a fim de evitar a distorção (sic!) do funcionamento do mercado financeiro De facto, o Sri Lanka é um dos raros países onde a saúde e a educação ainda são gratuitos em princípio, mas as medidas de austeridade impostas por governos cúmplices do FMI fazem com que os custos reais dos estudos (incluindo os primários) e da saúde básica aumentem constantemente, porque é preciso pagar os livros escolares, os medicamentos. Muitas famílias são empurradas para a educação e a saúde privadas por causa da degradação dos serviços públicos; por conseguinte, as famílias pobres têm de endividar-se às agências de microcrédito, a fim de conseguirem fazer frente às despesas escolares e de saúde. E são as mulheres as mais directamente afectadas, pois são sobretudo elas que têm a seu cargo a saúde e a educação das crianças.

A lista das medidas neoliberais recomendadas pelo FMI com impacto funesto sobre a vida quotidiana de milhões de pessoas no Sri Lanka e de centenas de milhões à escala planetária é enorme.

E nada disto mudará se os povos não se livrarem do FMI, colocando no governo forças políticas que optem por soluções radicais que assegurem o respeito pela justiça social, o gozo dos direitos humanos e o respeito pela Natureza.


A política actual do FMI no Sri Lanka

Em 2016 o governo neoliberal do Sri Lanka apelou ao FMI, que respondeu com um crédito no valor de 1600 milhões de dólares, na condição de serem seguidas as suas recomendações. Este programa continua em execução e o seu balanço é inteiramente negativo.

Em fevereiro de 2020 concluiu-se uma visita do FMI ao Sri Lanka. O comunicado de imprensa dessa instituição sediada em Washington é altamente significativo (https://www.imf.org/en/News/Articles/2020/02/07/pr2042-sri-lanka-imf-staff-concludes-visit-to-sri-lanka). O FMI declara que a decisão do Governo de fixar uma taxa mínima de 35 % para os juros sobre empréstimos de microcrédito deve ser temporária, para evitar a distorção (sic!) do funcionamento do mercado financeiro Mercado financeiro Mercado de capitais a longo prazo. Inclui um mercado primário (o das emissões) e um mercado secundário (o da revenda). A par dos mercados regulamentados encontramos mercados fora da bolsa, onde não existe a obrigação de satisfazer regras e condições mínimas. . Diga-se de passagem que o Governo fixou esse limite máximo por estar a ser pressionado na praça pública. Milhares de mulheres vítimas do microcrédito e das respectivas taxas de juro abusivas mobilizaram-se no Norte do país para exigirem que as taxas de juro não ultrapassassem os 25 % (o que ainda assim é demasiado elevado, uma vez que a taxa de inflação não excede os 4 %). A fixação em 35 % das taxas de juro máximo a serem aplicadas pelas sociedades financeiras constitui uma concessão limitada do Governo, pressionado pela amplitude do drama social e pela extensão das mobilizações. É preciso dizer que, num relatório muito claro, o perito independente das Nações Unidas para a dívida e os direitos humanos fez soar o alarme sobre a situação dramática vivida por numerosas vítimas do microcrédito no Sri Lanka. Este relatório, redigido após uma missão no terreno, é devastador para o Governo, as instituições financeiras e outros financiadores estrangeiros (https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=23482&LangID=E), e apelava à intervenção do Governo (https://lk.one.un.org/news/end-of-mission-statement-un-independent-expert-on-the-effects-of-foreign-debt-and-human-rights/).

O volume da dívida do Sri Lanka aumentou fortemente nos últimos três anos, ultrapassando agora os 90 % do PIB. Recordemos que o actual acordo com o FMI remonta a 2016, Ora, entre 2016 e finais de 2018, a dívida pública aumentou 30 %

O Governo tentou justificar-se afirmando que estava a levar a cabo uma política de redução da pobreza (https://www.mfa.gov.lk/sri-lankas-statement-on-the-report-of-the-independent-expert-on-foreign-debt-and-human-rights/ e https://www.mfa.gov.lk/wp-content/uploads/2019/03/Statement.pdf). Acrescente-se que o perito independente seguiu atentamente o 7.º atelier do CADTM Ásia do Sul, realizado em Colombo, em abril de 2018 (https://www.cadtm.org/Declaration-de-Colombo-sur-les; https://www.cadtm.org/Asie-du-Sud-Nouveaux-creanciers-et; https://www.cadtm.org/Temoignages-accablants-sur-les), e que os movimentos sociais do Sri Lanka lhe tinham endereçado um documento público aquando da sua visita, em agosto de 2018 (https://www.cadtm.org/Submission-to-the-Independent-Expert-on-foreign-debt-and-human-rights-By-Civil).

Foi portanto no seguimento de várias formas de pressão que o Governo fixou um tecto máximo de 35 %. Embora esta taxa continue a ser absolutamente exagerada e usurária, o FMI teve o descaro de declarar, num comunicado de imprensa de 7-02-2020, que é necessário, com a brevidade possível, restabelecer o direito de fixar livremente as taxas!

O FMI também apela a que o governo ponha fim logo que possível à moratória sobre o pagamento das dívidas das pequenas e médias empresas. É preciso dizer que depois dos ataques terroristas de abril de 2019, os turistas fugiram do Sri Lanka durante dois meses, o que pôs em apuros a economia e em particular as pequenas e médias empresas. Para evitar uma catadupa de falências, o Governo decretou a suspensão do pagamento das dívidas dessas empresas – é essa medida que o FMI quer ver anulada o mais depressa possível.

Além disso, o FMI requer que o Governo prossiga com as medidas de austeridade e de privatização sorrateira e progressiva das empresas públicas, tendo em mira nomeadamente a companhia aérea SriLankan Airlines, a companhia petrolífera e a de electricidade (ver https://www.imf.org/en/Publications/CR/Issues/2019/11/04/Sri-Lanka-Sixth-Review-Under-the-Extended-Arrangement-Under-the-Extended-Fund-Facility-and-48787).

A União Europeia não é alheia à situação. O seu banco de investimento, o BEI, apoia activamente as empresas de microcrédito que exploram e espoliam centenas de milhares de mulheres no Sri Lanka

O FMI requer que o Governo aprofunde a liberalização do comércio internacional e as medidas para atrair os investimentos estrangeiros. São bem conhecidas as consequências dessa política.

O volume da dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. do Sri Lanka aumentou muito nos últimos três anos e já ultrapassa os 90 % do PIB PIB
Produto interno bruto
O produto interno bruto é um agregado económico que mede a produção total num determinado território, calculado pela soma dos valores acrescentados. Esta fórmula de medida é notoriamente incompleta; não leva em conta, por exemplo, todas as actividades que não são objecto de trocas mercantis. O PIB contabiliza tanto a produção de bens como a de serviços. Chama-se crescimento económico à variação do PIB entre dois períodos.
. Recordemos que o actual acordo com o FMI remonta a 2016. Ora entre 2016 e finais de 2018 a dívida pública aumentou 30 %. Isto significa que a acção do FMI contribuiu activamente para aumentar a dívida do Sri Lanka, o que por sua vez aumenta a dependência do país em relação aos credores estrangeiros ou nacionais. Ainda que minoritária, a dívida sob a forma de títulos soberanos emitidos nos mercados financeiros estrangeiros duplicou em volume. Em percentagem, aumentou 50 %.


O FMI dá murros na mesa para exigir ao Governo a aplicação de uma política mais firme de austeridade nas despesas públicas.

Hiruni, tal como a esmagadora maioria da população do Sri Lanka, não pode esperar nada de bom do FMI.

O CADTM, que realizou o seu 8.º atelier regional da Ásia do Sul em Colombo, em fevereiro de 2020, deu o seu apoio às vítimas das políticas aplicadas pelo Governo e pelo FMI. O perito independente das Nações Unidas para a dívida e direitos humanos enviou aos participantes do atelier CADTM uma mensagem que aborda os problemas de fundo (https://www.cadtm.org/Message-from-Juan-Pablo-Bohoslavski-the-UN-expert-on-Debt-and-Human-Rights-to).

Note-se que paralelamente aos acordos funestos com o FMI, a acção mortífera da Administração Trump desempenha um papel considerável na degradação das condições de vida da grande maioria da população do país. Um dos canais de intervenção de Washington é constituído por uma agência federal criada em 2004, chamada Millenium Challenge Corporation e activa no Sri Lanka desde abril de 2019 (ver https://www.mcc.gov/where-we-work/country/sri-lanka). Atribui boas ou más notações aos países onde opera (ver https://www.mcc.gov/who-we-fund/scorecard/fy-2019/LK). A sua acção nociva soma-se à da clássica USAID, outra agência federal que encoraja a precarizar ainda mais o mercado de trabalho no Sri Lanka (ainda que o FMI não se envolva directamente).

O CADTM solidariza-se com Hiruni e todas as mulheres e homens que, como ela, decidiram resistir

A União Europeia não dorme na forma. O seu banco de investimento Banco de investimento Sociedade financeira cuja actividade consiste em efectuar três tipos de operações: aconselhamento (nomeadamente em fusão-aquisição), gestão por conta de emrpesas (aumentos de capital, introdução na Bolsa, emissão de empréstimos obrigacionistas) e investimentos nos mercados. Os bancos de investimento não angariam capitais junto do público, financiam-se emprestando aos bancos ou recorrendo aos mercados financeiros. , o BEI, apoia activamente as empresas de microcrédito que exploram e espoliam centenas de milhares de mulheres no Sri Lanka. Acrescente-se que o banco privado supostamente ético Triodos também investe no negócio do microcrédito no país (https://www.lankabusinessonline.com/tripartite-finance/).

É claro que a China também não passa ao lado nem dá bónus: o Sri Lanka ocupa um lugar estratégico nas rotas comerciais e a China construiu vários portos, sem ter em conta a preservação do ambiente e endividando o Sri Lanka.

O CADTM junta-se a Hiruni e a todas aquelas e aqueles que, como ela, decidiram finalmente resistir. Porque Hiruni, depois de ter sido uma vítima passiva, aderiu a um grupo de resistência activa constituído por muitas outras mulheres que se manifestaram em Colombo a 27 de fevereiro de 2020, para exigirem que o Governo responda às suas reivindicações.


Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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