3 de Setembro por Fátima Martín

Imagem: Jorge Alaminos. (Litoral gráfico. Modos de ver)
O Banco Central Europeu (BCE) reconheceu o impacto que o aumento da despesa militar por parte dos países-membros da União Europeia (UE) terá sobre a dívida, os juros e o tesouro público. E até faz eco dos planos de desviar para a defesa fundos actualmente destinados a outros fins.
«Prevê-se que os níveis de dívida e dos juros aumentem, o que irá pesar sobre as finanças públicas para lá do curto e médio prazo. (…) Os níveis de dívida pública
Dívida pública
Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social.
poderão voltar a aumentar, uma vez que o aumento da despesa com defesa e os possíveis pacotes de estímulos adicionais serão financiados em grande parte com dívida adicional», admitiu o BCE
Banco central europeu
BCE
O Banco Central Europeu é uma instituição europeia sediada em Francoforte e criada em 1998. Os países da zona euro transferiram para o BCE as suas competências em matéria monetária e o seu papel oficial de assegurar a estabilidade dos preços (lutar contra a inflação) em toda a zona. Os seus três órgãos de decisão (o conselho de governadores, o directório e o conselho geral) são todos eles compostos por governadores dos bancos centrais dos países membros ou por especialistas «reconhecidos». Segundo os estatutos, pretende ser «independente» politicamente, mas é directamente influenciado pelo mundo financeiro.
na sua Financial Stability Review do passado mês de maio [1].
E explicou o mecanismo: «Dado o prazo médio relativamente longo da nova dívida soberana
Dívida soberana
Dívida de um Estado ou garantida por um Estado.
, é provável que o refinanciamento da dívida que vence a taxas muito baixas antes de 2022 nas condições atuais do mercado, juntamente com a emissão necessária para financiar as despesas adicionais, aumente os pagamentos de juros em relação ao PIB
PIB
Produto interno bruto
O produto interno bruto é um agregado económico que mede a produção total num determinado território, calculado pela soma dos valores acrescentados. Esta fórmula de medida é notoriamente incompleta; não leva em conta, por exemplo, todas as actividades que não são objecto de trocas mercantis. O PIB contabiliza tanto a produção de bens como a de serviços. Chama-se crescimento económico à variação do PIB entre dois períodos.
nos próximos anos» [2].
O plano para rearmar a Europa sugere «reutilizar partes do orçamento actual da UE»
Na secção dedicada ao contexto macrofinanceiro e de crédito, o BCE insiste que os aumentos nas despesas com a defesa terão um impacto significativo nos orçamentos, o que exigirá uma maior margem fiscal. Para aumentar essa margem fiscal, o relatório refere as propostas previstas pela Comissão Europeia no seu plano de rearmamento europeu [3]: activar a cláusula de emergência nacional do Pacto de Estabilidade e Crescimento e desembolsar empréstimos provenientes de novos empréstimos conjuntos através do instrumento de Acção de Segurança para a Europa (SAFE). Além disso o plano sugere «reutilizar partes do orçamento actual da UE».
O Stockholm International Peace Research Institute (Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo – SIPRI), que registou um aumento sem precedentes nas despesas militares mundiais em 2024, atingindo 2,7 biliões de dólares, liderado pela Europa e pelo Médio Oriente, alerta que, à medida que os governos dão cada vez mais prioridade à segurança militar, muitas vezes em detrimento de outras rubricas orçamentais, as consequências económicas e sociais poderão ter um impacto significativo nas sociedades durante os próximos anos. [4]
Em 2024 todos os países europeus, com excepção de Malta, aumentaram a despesa militar
Segundo os dados recolhidos pelo SIPRI, o ano passado, em toda a Europa, incluindo a Rússia, a despesa militar aumentou cerca de 17 %, totalizando 693.000 milhões de dólares, e foi a principal responsável pelo incremento global em 2024. Ao terceiro ano consecutivo de guerra na Ucrânia, a despesa militar continuou a crescer em todo o continente, superando o nível registado no final da Guerra Fria. Todos os países europeus, com excepção de Malta, aumentaram a despesa militar em 2024.
A despesa militar da Alemanha cresceu 28 %, chegando aos 88.500 milhões de dólares. A Alemanha tornou-se assim o país com maior despesa na Europa Central e Ocidental (pela primeira vez desde a reunificação) e o quarto a nível mundial. A despesa da Polónia aumentou 31 %, chegando aos 38.000 milhões de dólares, o que representa 4,2 % do seu PIB. A França aumentou a despesa militar em 6,1 %, totalizando 64.700 milhões de dólares, situando-se em nono lugar a nível mundial. A Suécia aumentou a despesa militar em 34 %, totalizando 12.000 milhões de dólares. «A Europa entrou numa era de despesas militares elevadas e crescentes que provavelmente se prolongará nos próximos anos», prevê o SIPRI.
No caso específico da União Europeia (UE), o próprio Parlamento europeu documenta o que denomina «reforço da segurança na UE». Esse reforço traduz-se num aumento da despesa, entre os estados membros da UE, de mais 30 % entre 2021 e 2024, ascendendo a um total estimado de 326.000 milhões de euros em 2024. Isto equivale a 1,9 % do PIB da UE. A despesa foi aumentando de forma constante desde 2014, quando era de 147.000 milhões de euros.
A Comissão Europeia, por alturas do mês de março, estimava que o plano para rearmar a Europa poderia orçar em 800.000 milhões de euros [5]. Isto foi três meses antes da Cimeira da OTAN em Haia, onde, sob pressão de Trump, os países-membros se comprometeram a aumentar o investimento anual em defesa até 5 % do PIB para 2035. [6]
A despesa militar dos membros europeus da OTAN não se traduz necessariamente numa maior autonomia em relação aos EUA, segundo o SIPRI
As investigações do SIPRI também fornecem dados sobre a despesa militar dos países membros da OTAN. Em concreto, os membros europeus da OTAN gastaram em conjunto 454.000 milhões de dólares, o que representa 30 % do total da Aliança. Segundo o SIPRI, o rápido crescimento da despesa nos países membros europeus da OTAN deveu-se principalmente à ameaça da Rússia e à preocupação com um possível retraimento dos EUA dentro da Aliança. Contudo, o aumento da despesa não se traduz necessariamente numa capacidade militar significativamente maior nem numa autonomia em relação aos EUA. «Trata-se de objectivos muito mais complexos», avisa o SIPRI.
Parte dessa complexidade pode ser observada no facto de o fundo norte-americano BlackRock, o maior gestor de activos do mundo, é um dos grandes beneficiados com o rearmamento da Europa. De facto, os fundos de investimento norte-americanos operam nas grandes empresas militares tanto dos EUA como da UE, onde partilham as acções com os próprios estados. [7]
A OCDE pede à UE que a despesa com a defesa não seja financiada com dívida e adverte sobre a necessidade de fazer cortes noutros sectores ou subir os impostos
Além do BCE, não são poucos os organismos que prevêem o impacto da despesa militar sobre as finanças públicas. Recentemente, o Fundo Monetário Internacional (FMI) instou a União Europeia a analisar o impacto do aumento da despesa com defesa em relação à sustentabilidade da dívida pública, dado o desafiante momento internacional. E, do mesmo passo, recomendou «fazer reformas significativas» [8].
Por seu lado, a OCDE instou a UE a não financiar a despesa com defesa à custa de dívida e advertiu para a possível necessidade de fazer cortes noutros sectores ou subir os impostos, especialmente nos países com menos carga fiscal. [9]
Ao nível interno, a presidente da Autoridade Independente de Responsabilidade Fiscal (AIReF), Cristina Herrero, deixou claro que a despesa militar conta para o défice e para a dívida: «Em termos orçamentais, 10.000 milhões de despesa em defesa são 10.000 de défice e dívida, por mais reestruturação que se faça. (…) Ou se sobem as receitas ou se baixam outras despesas. Disso não restam dúvidas», assegurou [10]. Compete recordar aqui: o belicismo da Europa dispara a dívida pública e ataca o estado de bem-estar [11].
Tradução: Rui Viana Pereira
[1] ECB. (2025). Financial Stability Review. https://www.ecb.europa.eu/press/financial-stability-publications/fsr/html/ecb.fsr202505 0cde5244f6.es.html#toc6.
[2] Global Debt Report 2025, OECD Publishing, March 2025.
[3] Initially announced as the ReArm Europe Plan. Ver «Press statement by President von der Leyen on the defence package», European Commission, Brussels, 4 March 2025, e «Commission unveils the White Paper for European Defence and the ReArm Europe Plan/Readiness 2030», European Commission, Brussels, 19 March 2025.
[4] SIPRI (28/04/2025). Aumento sin precedentes del gasto militar mundial impulsado por Europa y Oriente Medio. https://www.sipri.org/sites/default/files/2025%20MILEX%20PR%20ESP.pdf.
[5] Parlamento Europeu. (28/03/2025). Defesa: como a UE está a reforçar a sua segurança. https://www.europarl.europa.eu/topics/pt/article/20190612STO54310/defesa-como-a-ue-esta-a-reforcar-a-sua-seguranca
[6] NATO. (25/06/2025). NATO concludes historic Summit in The Hague. https://www.nato.int/cps/en/natohq/news_236516.htm
[7] Martín, F. (04/04/2025). «BlackRock, ex empleador estadounidense del próximo canciller alemán Merz, gran beneficiado del ReArme de Europa». CADTM.
[8] RTVE.es. (19/06/2025). «El FMI insta a Bruselas a analizar el impacto de aumentar el gasto militar en la sostenibilidad de la deuda pública». https://www.rtve.es/noticias/20250619/fmi-bruselas-impacto-gasto-militar-sostenibilidad-deuda-publica/16632465.shtml.
[9] López, D. (03/06/2025). «La OCDE reclama a la Unión Europea que el gasto en defensa no se financie con deuda». El País. https://elpais.com/economia/2025-06-03/la-ocde-reclama-a-la-union-europea-que-el-gasto-en-defensa-no-se-financie-con-deuda.html
[10] Europa Press. (24/06/2025). «La Airef afirma que el gasto militar cabe en los Presupuestos, pero habrá que subir ingresos o bajar gastos». https://www.europapress.es/economia/noticia-airef-afirma-gasto-militar-cabe-presupuestos-habra-subir-ingresos-bajar-gastos-20250624112402.html
[11] Martín, F. (28/07/2025). «El guerrerismo de Europa dispara la deuda pública y ataca el estado del bienestar». CADTM.
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